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terça-feira, 1 de março de 2022

O MEU CARNAVAL por Manuel Rodas

 

Carnaval em Paradela, anos 60


O MEU CARNAVAL

por Manuel Rodas

Gosto da ideia das Sacéias, ritual babilónico, em que um prisioneiro assumia, durante alguns dias, a figura do rei, vestindo-se como ele, alimentando-se da mesma forma e dormindo com suas esposas. Apenas me entristece que no final, o prisioneiro seja chicoteado e depois enforcado ou empalado.

Rebuscando na memória da infância, encontro uma altura do ano, em que na minha aldeia, se interrompiam os trabalhos pesados da agricultura de subsistência e o povo se transformasse no rei da festa. Os prisioneiros do trabalho duro vestiam-se de reis e mordomos, comiam do melhor que havia e dançando e cantando exibiam a alegria natural  de quem trata a vida por tu e decide o futuro.

O Carnaval em Paradela*, anos 60, era muito semelhante ao de Lindoso. A aldeia dividia-se em dois partidos, os de Cima e os do Fundo e a divisão seria pela Lanja da Coca, mais ou menos a meio da aldeia.

No dia anterior já se exaltavam os ânimos, ao som da concertina, no baile da gente jovem, perante a assistência e vigilância das mães que guardavam as filhas dos ímpetos sensuais da carne enquanto rememoravam a sua juventude perdida. A meio do baile, este era interrompido, dava-se descanso ao afogueamento dos pares, já com falta de ar, para dar início à dramatização da venda dum burro, bem ajaezado à andaluza (dois homens disfarçados, um em pé e outro atrás, vergado e apoiado na cintura do primeiro).

O “dono” do burro tentava vendê-lo a um suposto comprador; o burro era manso com o dono mas, teimoso e agressivo com o comprador. Todos riam e aplaudiam, até que o baile recomeçava com as chulas, cana verdes, viras, adrenalina e ... muito vinho.

No dia seguinte, toda a aldeia se transfigurava. Novos e velhos, crianças e petizes recorriam à imaginação coletiva para se aperaltarem com risos, chacotas e zombarias, socorrendo-se de enfeites, preparos e ornatos improvisados, até aí encobertos e guardados pelas avós, nos malões ou caixas de roupa e guarda fatos de toda a aldeia.

O resultado era um exército ou bando de esconjurados, momos e saltimbancos transfigurados, virando a realidade ao contrário e prontos à vingança, sem contemplação ou benevolência.

Com hossanas ao vezo e perversão, cornos das vacas enfeitados, os dois carros aperaltados desfilavam, seguidos por uma malta de saltimbancos, truões, acrobatas, jograis e momos, em dois grupos, até à Boucinha ( zona comunitária) e aí se tiravam as teimas, dançando e cantando, fazendo afrontas e momices, tentando demonstrar pelo movimento, cor e provocações quem era o merecedor da vitória nesse ano. Quem eram os reis da festa. Uma vitória consensual. Aí se elegia o vencedor, por unanimidade e aclamação.

A esta grande celebração, sucedia a minha tristeza sem limites, no dia seguinte, quando via aqueles excelsos reis e rainhas do dia anterior transformados em prisioneiros do trabalho, chicoteados pelas obrigações, vestidos de rasgos de negro, esgaravatando o sustento, com uma perspetiva de vida negada e empalada. Dava comigo a lavar a cara da tristeza na fonte do Santo, com água bem fria, mas com o milagre de me devolver à realidade. No mais íntimo de mim, uma faúlha teimava: afinal era possível fazer da vida uma festa!

Esta premonição veio a confirmar-se com o 25 de abril de 1974, e sendo já professor no meu primeiro ano, reunimos o povo no largo da capela e de cima duma pedra falei-lhes duma velha aspiração: uma comissão de melhoramentos!

Quando foi preciso fazer uma votação, sem lápis, hem papel, desci da pedra e, com um varapau emprestado, fiz um traço no chão.

De volta ao púlpito, acrescentei:

- Quem concorda vai para a direita e que não concorda vai para a esquerda!

Apreensivo, aguardei a movimentação calma e serena das pessoas a escolherem o seu lugar, confiantes que participavam, numa decisão coletiva. Eu, feliz, voltei a sorrir:

Afinal, é possível devolver dignidade à vida, é possível fazer da vida uma festa!

Anos mais tarde, era a minha filha e esposa que me diziam:

Com esta autocaravana é vida é uma festa!

Eu apenas retorquia, enquanto saboreava estas velhas histórias:

Convosco a vida é uma festa!


**********

Para os que me leem, digo-vos:

Com o MAPAC a vida pode ser uma festa!


Manuel Rodas

(Membro do MAPAC)


* Paradela, freguesia de Soajo, mesmo do outro lado do rio Lima, em frente a Lindoso.


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